O BOM SENSO
Martines se escandaliza com as três pessoas em Deus. Para ele,
Deus é um e sua essência é quaternária. Essa quaternidade, Deus a
manifesta pela emanação dos primeiros seres em quatro classes.
Martines denuncia o dogma da Trindade, mas vê em Deus três
modalidades de expressão: o pensamento, a vontade e a ação. Essa
trindade de operação se exerce por meio de espíritos, e será
posteriormente também o apanágio do homem. Os anjos — que,
em Martines, são e não são os espíritos — desempenham uma
quantidade enorme de papéis para com Deus e o universo!
Martines mostra em seu Tratado como esses seres emanados
traíram e a história começou. Essa ruptura exigiu a criação material
destinada a servir de casa de correção para os rebeldes. O homem é
então emanado para dirigir o universo. Na companhia dos anjos
que permaneceram fiéis, ele deve trabalhar para a reunificação de
todos os seres. Os anjos bons são para o homem órgãos
necessários. O trabalho imputado ao homem, o culto verdadeiro,
consiste, portanto, em se relacionar com esses agentes
intermediários. Os anjos são como pseudópodes do mediador
supremo. Sua eficiência advém de sua subordinação ao Reparador
ou Mediador Universal, Cristo, Messias, Sabedoria, a coisa.
Adão é o primeiro elu, ou eleito, chamado a operar a
reintegração. Ele é o reau, o ruivo, feito de terra vermelha. Ele é o
rei do universo, homem-Deus fortíssimo em sabedoria, virtude e
potência. Adão é homem-Deus, emanado à imagem e semelhança
de Deus. Imagem de Deus, ele porta o selo quaternário; Martines o
chama de "menor quaternário". Semelhante a Deus, ele possui três
faculdades de expressão: pensamento, vontade e ação.
Adão vive primeiro fora da dimensão temporal e espacial, na
meta-história, embora sua missão o obrigue a fabricar para si um
corpo glorioso, a fim de obrar no mundo criado. Sua própria queda
o condenará ao exílio terrestre. Ele conserva, escondida nele, a
imagem de Deus, mas da semelhança ele só guarda as faculdades
de vontade e ação, porque ele se isolou do pensamento de Deus. O
homem deve se reconciliar para reencontrar sua triplicidade de
operação; como está, ele necessita dos outros espíritos para pensar.
Por sua vontade, incumbe-lhe, contudo, escolher entre os
pensamentos dos bons espíritos e os dos maus, que tentam
desencaminhá-lo. Privado do Sol supremo, ele tem um guia como
archote, um "bom companheiro": o seu anjo da guarda.
Mesmo exilado o homem conserva seu status e continua
ocupando o centro do universo, onde sua missão deve ser exercida.
Deus, entretanto, não deixa o homem sozinho em sua missão. Ele
lhe envia ou escolhe entre a humanidade os eleitos, ou seja,
homens que têm em si algo angélico ou divino. Muitos deles são
profetas e são escolhidos para manter o verdadeiro culto entre os
homens. Martines classifica esses eleitos em três categorias e
fornece uma lista deles: Hely (não Elias), Enoque, Melquisedeque,
Ur, Hiram, Elias e o Cristo (ou Messias). Uma outra lista
compreende Abraão (algumas vezes Adão e Abel), Enoque, Noé,
Melquisedeque, Josué, Moisés, Davi, Salomão, Zorobabel e o
Messias.
Através de todos esses eleitos circula, em graus variados de
presença, um só e mesmo espírito: o profeta recorrente, o Messias
coexistente com e na humanidade em vias de reintegração. Um
nome domina o desses eleitos: Hely. Ele é onipresente no Tratado
e seu papel é essencial na salvação dos homens.
Martines diferencia Hely (que às vezes ele escreve Rhely) de
Elias. Elias é, depois de Moisés, a maior figura do Antigo
Testamento. Como Enoque e, mais tarde, o Cristo, na Ascensão,
Elias sobe aos céus numa carruagem de fogo. Seu retorno é
anunciado para os tempos messiânicos. Para alguns, Elias, como
Melquisedeque, é um anjo encarnado. Outros supõem que, após
sua elevação, ele se tornou o anjo Sandalfon, assim como Enoque
se tornou o anjo Metatron. A tradição judaica faz de Elias o
precursor do Messias, e o Pseudo-Clemente discerne nele o profeta
recorrente. Martines fará o mesmo. Judeus, judaico-cristãos e
cristãos da Grande Igreja concordam sobre a figura messiânica do
profeta Elias. Os judeus sustentam que o Espírito não só inspira
Elias, mas está associado a ele. No baixo-judaísmo o Espírito é
dado ao Messias. A tradição judaico-cristã restaura essa última
tradição sem negligenciar a primeira. Elias se torna um quase-
Messias ou um Messias sacerdotal. Martines participa no malentendido,
porque Hely tem a ver com o Espírito.
Na época de Jesus as pessoas se interrogavam para saber se ele
era Elias. Os círculos judaico-cristãos ou gnósticos ensinavam que
o espírito ou o Espírito que séculos antes estivera com Elias, o
espírito de Hely, fez, durante o batismo no Jordão, sua junção com
Jesus, que teria assim se tornado o Cristo, isto é, Messias (em
grego). Martines foi educado ou recebeu essa concepção judaicocristã
que faz de Jesus o Hely, desde seu nascimento, ao que
parece, ou desde bem cedo.
Tenhamos em mente, no que diz respeito ao Tratado e outros
testemunhos do judaico-cristianismo, a recorrência de Elias,
tipologia conjunta, em ligação com o messianismo, com o Messias,
e, em razão da ligação com o Espírito, segundo a tradição rabínica
e judaico-cristã, com Jesus Cristo e sua Sabedoria,
Jesus-Cristo-Sabedoria; o Espírito e Jesus-Cristo-Sabedoria
associados ou conjuntos, segundo a tradição judaico-cristã. O
Espírito que é lambem o Hely de Martines; Jesus-Cristo-Sabedoria
que é a coisa. É preciso voltar incessantemente a esse ponto, e não
deixaremos de fazer isto. Nem de admirar Rhely.
Hely é o Cristo, inseparável do espírito, um ser pensante, o
novo Adão. Hely é o Cristo sempre presente nos profetas, por seu
espírito e sua virtude. Esses profetas são o Profeta que retorna, o
Messias sempre presente entre os homens, com diferentes nomes.
Para Martines, repetimos, Hely é o Verbo e o Espírito, a Sabedoria
que caminhava diante do Eterno quando da criação, o Verus
Propheta, o líder dos anjos. A permanência divina não exclui a
progressão profética. Hely é primordial, é o mais forte; o Cristo é o
último, que arruma e fecha tudo. Martines passa, sem problema, de
Hely, o espírito santo, para o Cristo, o Messias. Um e outro,
quando os distinguimos, animam a corrente dos profetas, na qual
eles estão, na qual ele está, com nomes próprios e respectivos, nas
duas extremidades. Todos os profetas são figuras do Cristo e
suportes de Hely, que chamamos de Cristo, eminentemente.
Mâchîah, o ungido, transcrito como Messias e traduzido para o
grego como Christos, retorna umas quarenta vezes no Antigo
Testamento. Ele se aplica a personagens consagrados por uma
função sagrada: reis, sacerdotes ou profetas. O Cristo é o
reconciliador universal, o reparador universal. O Cristo ou Messias
não se limita à pessoa de Jesus, que apenas o contém, e sempre
esteve com os filhos dos homens. Incógnito, é também uma
tradição importante dos judeus e dos judaico-cristãos.
Ao Cristo pertencem três grandes atos. Pelo primeiro, com o
nome de Hely, ele reconciliou Adão após a queda. Pelo
segundo, sua encarnação em Jesus, ele reconciliou todo o gênero
humano. A hora do terceiro soará no fim dos tempos, na
reintegração final. O Cristo deixou uma Igreja e uma liturgia que
incorpora elementos de tradição muito antiga. Martines sustenta
isso e identifica essa religião com o catolicismo romano que ele
professa, mas à custa de alguns ajustes e de quantos malentendidos!
TRATADO DA REINTEGRAÇÃO
DOS SERES
em sua primeira propriedade,
virtude e potência espiritual
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